quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

E nós cobrimos seus olhos: uma novela e outros contos - Alaa Al Aswany

"Eu, autor desta novela, declaro que não estou de acordo com as opiniões do protagonista Issam Abulâti e que elas representam o oposto do que penso do Egito e dos egípcios. Gostaria de afirmar que o protagonista é demente e psicologicamente instável. Eu escrevo este repúdio a pedido da comissão de leitura da Organização Geral Egípcia do Livro."

O livro me fisgou pela citação acima, impressa na capa, cobrindo, inclusive, parte do título. Inicialmente, pensei que fosse algum recurso metalinguístico do escritor para chamar a atenção do leitor. Ainda que o editor tenha tido essa sacada, a mensagem foi realmente escrita para a chamada comissão de leitura da OGEL - Organização Geral Egípcia do Livro, como o autor explica na introdução do livro.


Após receber algumas críticas positivas de seus amigos, Aswany tentou publicar o livro através da OGEL, mas ficou surpreso com a resposta que obteve: era impossível para a Organização publicar o livro porque "insultava o Egito". Depois de muita discussão, o funcionário aceitou cogitar a publicar seu livro depois que ele escrevesse uma nota de repúdio ao personagem principal da novela. Apesar disso, o livro nunca foi aprovado pela comissão, fortemente envolvida em burocracias e apadrinhamentos políticos.

Além da peculiaridade da nota existente na capa, comprei o livro porque nunca havia lido um trabalho desse autor, nem de literatura egípcia. De acordo com a orelha, o escritor tem um best-seller em língua árabe chamado O Edifício Yacubian, já adaptado para o cinema e também publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Como o próprio título já diz, trata-se de uma novela e de contos, mais especificamente, dezesseis narrativas curtas. A novela gira em torno da vida de Issam Abudlâti, que, diferente de seus conterrâneos, detesta ser egípcio e repudia qualquer opinião ufanista sobre seu povo e seu país. Na mesma direção, Issam se apaixona pelo modo de vida ocidental e passa a se comportar da mesma forma: rompe com a religião, passa a frequentar exposições de artistas europeus, compra revistas francesas e americanas, compra roupas novas e elegantes e se envolve com uma alemã (ainda que esse fato possa ser apenas um delírio). O ocidente é uma espécie de oásis em seu mundo, deslumbra-se com suas possibilidades:

O espírito do "Ocidente" é que me cativa nas fotos. Isso mesmo. O espírito ocidental nos rodeia, nós o vemos em tudo, mas raras vezes o destituímos de sua aparência. Tudo o que temos de elegante na nossa vida é necessariamente ocidental! Quer exemplos? O jaleco branco do médico, os aparelhos científicos e até mesmo os domésticos, a gravata de um ator de cinema, o carro luxuoso, moderno, tudo. Tudo o que admiramos pertence a eles. Quando meu pensamento chegou a esse nível de clareza, fiquei com medo de esquecer o que havia compreendido ou que fosse coberto por outras ideias menos importantes, por isso peguei um caderno na minha gaveta e escrevi na primeira página: "Agora entendo que fui encarcerado pelo espírito do Ocidente, e na mesma medida em que me certifico de nossa futilidade, vejo o espírito deles transbordando possibilidades maravilhosas".



Issam passa a visitar os pontos turísticos da cidade do Cairo, pois acredita que ali residia "a beleza". Fingia apreciar as pirâmides e o Museu Nacional, quando na verdade estava a contemplar as pessoas que frequentam esses lugares. Com o mesmo propósito, Abudlâti retira os quadros de autoria de seu pai, artista plástico sem expressividade, e coloca pôsteres com fotografias das revistas que havia comprado. Esse gesto vai além de se deixar invadir pelo consumismo ocidental, ele também rompe definitivamente com a figura paterna e com toda a cultura árabe a que ela remete.

Assim como a novela, os contos de Aswany criticam o sectarismo árabe, mas de maneira diferente a que estamos acostumados a ver. Aqui o mundo ocidental não se mostra como um ideal, pelo contrário, é a obsessão por ele que leva o protagonista a seu fim trágico. Entre os contos, destaque para Ao senhor responsável pelo ar condicionado da sala, no qual a Guerra do Seis dias sob a perspectiva de uma cidade de Jenîn. O conto atrai não só pela abordagem do tema, mas também por sua estrutura e por seu narrador irônico.

Além disso, o escritor egípcio trata de questões universais delicadas, como a velhice, de forma chocante:

Quando se tem oitenta anos, ninguém mais o ama, porque os bons sentimentos também envelhecem, murcham e morrem, e porque viver mais do que o esperado é uma afronta aos outros. Com certeza, minha mãe e meu tio Abbas amavam muito minha avó há vinte ou trinta anos e, naquela época, quando pensavam no dia em que ela pudesse lhe faltar, ficavam muito tristes, mas agora tal dia demorava tanto a chegar que tinham a sensação de que minha avó era eterna e jamais seria removida pela morte.

Fiquei impressionada como o autor levanta tantas questões e consegue abordá-las de maneira tão multifacetada em narrativas curtas. E nós cobrimos seus olhos me fez descobrir Alaa Al Aswany. Espero conseguir ler outras obras do autor em breve.

Edição:

ASWANY, Alaa, Al. E nós cobrimos seus olhos: uma novela e outros contos. Tradução: Safa A-C Jubran. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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